Pano na boca
Ancien Régime
atingiu o Ribatejo
Há dias que mais vale ficar no abrigo do lar. Emoldurado no seio de quatro paredes. Apreciar, por exemplo, quadros egípcios (imperfeita imitação de pergaminho), decifrar símbolos milenares e imaginar o interior de enormes mausoléus vazios de tesoures e de morte. Há dias, que ficar defronte à tal caixa radioactiva (aquela que surge na prosa do faquir) parece ser a solução para uma série de gordos e escuros enigmas. Coisas que nem com os métodos e organizações do pequeno Poirot (pequeno só em tamanho) se chega lá. Mesmo que este peça ajuda à mãe, uma das responsável por encobrir as pequenas partículas de pó da minha estante.
Isto tudo para falar de uma passagem que manchou este Abril. Lá para as bandas de São Bento, na casa-mãe de democracia representativa, três mancebos ribatejanos (para falar apenas destes) foram severamente amordaçados por agentes do ancien régime absolutista. No tal jogo dito da cidadania (Hemiciclo), depois de terem galgado dois valentes obstáculos, ganharam o direito de representar a sua terra no coração da capital. Armados até aos dentes e preparados como nunca para uma guerra que acabaria por se tornar desigual, os jovens foram silenciados por uma organização, completamente desorganizada, que resolveu alterar as regras a meio daquele autêntico recreio ridículo. Preparados para a guerra que se esperava dura, munidos de excelentes tácticas de combate, os nossos mancebos da política caseira tiveram como estratégia, definida pelas chefias militares, um contra-ataque final. O objectivo era pontuar no frente-a-frente de perguntas e respostas em redor de uma sólida medida implacavelmente abrangente. Essa abrangência, pelo menos, foi reconhecida por todo o contingente bélico em pleno campo de batalha. Qual não foi o espanto, quando os tais organizados desorganizados abafaram a nossa oradora de serviço. Literalmente, foi-lhe posto “um pano na boca” aos 30 segundos da batalha. Ninguém queria acreditar no que estava a ver e ouvir. Como era possível desafiar-se os jovens para um debate, à partida democraticamente justo, e acabar-se por atingir o pelotão ribatejano no coração de Lisboa, impondo à força um injusto e negro silêncio.
Analisada metamorficamente a atitude, completamente fora dos ângulos do Canal Parlamento, aproximei-me do autor dos disparos que atingiram os jovens indefesos, e interpelei-o. Sempre com a mão no coldre de couro, não fosse eu ter de a sacar primeiro ao bom estilo do lendário Lucky Lucke. Mas não. Em resposta à minha ácida interpelação, o tipo limitou-se a fitar-me de um olhar carrancudo, como se eu tivesse pronunciado alguma blasfémia. Ao longo de curtos instantes, e foram mesmo curtos, tentou justificar-se com nada sobre nada de concreto. Fundamentação trivial, politicamente correcta. Foram apenas palavras soltas que acompanhavam um pequeno riacho de um salgado suor malcheiroso que lhe corria do rosto. Uma frouxa retórica, facilmente ultrapassável pelos vocábulos da pequena Joana, cujo pai tem a mania de contar tretas asfixiantes. Para a frente e para trás, mas népia. Enfim, ficou-se no mesmo sítio sem atar nem desatar. O mal estava feito. Pelo menos isso reconheceu. Agora, restava reparar o rombo em pleno casco da chaimite.
Da Sala do Senado, onde Garrett chegou a distribuir largas e belas lições de oratória, a equipa ribatejana desceu as enormes escadas de mármore, e saiu com a sensação de objectivo incumprido. Nas mãos, negras de um trabalho árduo de meses, ficaram largas mas insípidas promessas de nos compensarem pelo mal que nos fizeram. Tudo muito bem explicado, como se o tipo tivesse acabado de ingerir os “Gestos de Etiqueta e Cortesia” de Elisabete Vieira de Andrade. Com rostos tristes e alguns até chorosos, da casa-mãe da tal democracia representativa regressámos à terra mãe que nos viu nascer com a esperança vã de uma promessa que, ao que parece, jamais será cumprida.
Mário Gonçalves
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